O auditor fiscal do
Trabalho em Parnaíba Paulo César,o Curicaca é destaque na última edição da Revista
Labor, anuário do Ministério Público do Trabalho. Na entrevista o parnaibano conta sua
experiência de ex-coordenador de um grupo móvel do Ministério do Trabalho e
Emprego no combate ao trabalho escravo em regiões inóspitas do Brasil. Ele
trabalhou no Sul do Pará onde afirma ter se deparado com a escravidão de
trabalhadores e a violência extrema, característica destas situações
irregulares.
À revista Labor Curicaca
lembrou também como ficou no limbo do Ministério do Trabalho por algum tempo
depois de ter, no começo da sua carreira de auditor, atuado na fiscalização de uma
fazenda do empresário Ary Magalhães que, ao ser eleito deputado federal,
indicou uma sobrinha para o posto máximo do Trabalho no Piauí.
Confira a matéria
completa publicada na edição deste ano da Revista Labor, de circulação
nacional. (F. Carvalho, do www.a24horas.com)
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O Libertador de homens
Aos 57 anos, como ex-coordenador de grupos
móveis do Ministério do Trabalho e Emprego (MTE), tem muitas histórias para
contar sobre o combate ao trabalho escravo contemporâneo, apesar de não
integrar grupos móveis desde 2006. Na Gerência Regional de Trabalho e Emprego
de Parnaíba, hoje ele investiga acidentes de trabalho urbano e, vez por outra,
participa de fiscalizações rurais.
Curicaca, o Paulo
César Lima, nasceu na periferia de Parnaíba (PI), no bairro de São
José, o Cheira Mijo, segundo os próprios moradores. Terceiro de quatro filhos de um alfaiate com uma aplicadora de
injeção na veia de rua, como descreve a ocupação da mãe, foi criado por uma
tia, até se formar em engenharia civil. Ele
também tinha como padrinho um médico, que o mantinha na escola. “Ganhava
os livros e o uniforme se tirasse boas notas, a cada
ano. Se rateasse na
curva, me ferrava.”
Sempre deu certo e, em 1972, foi estudar
no Maranhão. Seu irmão mais velho já estava na faculdade. Em sua casa era
assim: o irmão estudava, começava a trabalhar e passava a cuidar do mais novo.
Ele se formou em julho de 1978 e foi
trabalhar em Rio Branco, na Companhia de Saneamento do Estado do Acre. Certa
vez, foi apresentar um trabalho em Brasília e conheceu o prefeito de Parnaíba,
que o convidou para retornar à cidade. “Era o sonho de minha vida, voltar
formado e ajudar minha família.”
Voltou como secretário
do prefeito, trabalhando
no Programa de Cidades de Porte Médio. Foi demitido na gestão seguinte. Passou apertado
e não tinha dinheiro
nem para consertar o pneu do carro. Então, um amigo falou sobre o concurso do Ministério do Trabalho. Paulo César
fez a prova e passou. Era setembro
de 1983.
Sua vida como Zumbi dos Palmares moderno começou com uma operação do MTE
que constatou haver trabalho escravo na usina de álcool e açúcar do empresário
Ari Magalhães.
Ele era auditor fiscal e acompanhou a investigação, comandada pela
auditora fiscal Cláudia Márcia Ribeiro Brito, do acidente em Teresina que matara e ferira grande número
de trabalhadores. Mais tarde, o empresário virou deputado federal e conseguiu
trocar o comando da Delegacia de Trabalho.
No lugar de Cláudia Brito, indicou Audrei Magalhães, sua sobrinha. Curicaca,
assim, ficou algum tempo no ostracismo.
Mas era e é irrequieto como a ave pernalta que dá sentido ao
apelido Curicaca. Um dia, de Brasília, Cláudia Márcia ligou para ele,
convidando-o para trabalhar nos grupos móveis. Foi. Precisava ver se afinava
com a ideia. Era 1994 e descobriu a vida. “Vi
os caras parecidos comigo. Todos da
minha região. Todos nordestinos.
Tinha afinidade com a luta.”
Seu jeitão facilitava o contato com os peões. Falavam a mesma língua e não
tinha dificuldade em compreender o que diziam. “Era um homem realizado, pago
para fazer o que gostava.” Mas nem
tudo era cor-de-rosa.
Havia dificuldades internas e externas. As primeiras estavam
relacionadas a pontos de vista, à gestão das operações de fiscalização, e as
segundas, aos parceiros, que não tinham o mesmo foco que os auditores fiscais. “Não
acreditavam na existência do trabalho escravo. Diziam: ‘O cara veio pra cá
porque quis. Ele estava quieto lá na casa dele. Por que não ficou no Nordeste?’.
Os principais problemas eram diferenças com policiais federais.” Uma vez, um deles chegou a dizer: “Se um
peão der trabalho para você, Curicaca, se ele se meter a besta, vai se ver
comigo.” Os anos 1990 chegavam ao
fim. Mais tarde, passou a coordenar um dos grupos móveis. Os
auditores fiscais Cláudia Márcia, Valderez
Monte, Marinalva Dantas e Paulo Mendes comandavam os outros.
A primeira
operação foi no Xinguara, no sul do Pará. “Saí de Parnaíba sozinho em direção a Caxias, no Maranhão.
Lá, encontrei a Cláudia [Cláudia Márcia Ribeiro Brito] e ficamos esperando outro auditor, o Sérgio
Carvalho de Santana.
De camionhete, fomos
até Marabá”, conta.
Uma operação de fiscalização durava de 12 a 15 dias, naqueles
anos. Hoje o tempo é menor. Há outras
diferenças também, principalmente tecnológicas. Naquele tempo, não havia
telefone, nem notebook. “Tudo era no braço. Não havia nem câmera
fotográfica. Hoje, os integrantes de um grupo móvel têm telefone e sistemas de
posicionamento por sátelite. Têm computador, internet e bons carros para entrar no meio do mato.”
Curicaca andou em fazenda que tinha dez peões e até em algumas com
1,8 mil.
“A gravidade não está na quantidade de trabalhadores escravizados,
mas na violência envolvida.” Ele explica que a escravidão por dívida é a mais
palpável, pois você pega o caderno do gato e fica sabendo quem trouxe quem e
como trouxe. “É um novelo, do qual só se sabe o começo, mas não se conhece o
fim.”
Para ele, se o governo não educar, não promover a reforma agrária
e não fizer leis mais rígidas, nada terá adiantado. “Esta é a solução: educar,
criar empregos e resolver o problema da terra.”
CURICACA RESPONDE
Quando e como
começou o enfrentamento ao trabalho escravo no Brasil?
Foi o bispo de São Félix do Araguaia,
dom Pedro Casaldáliga, quem primeiro falou sobre a existência de trabalho
escravo no Brasil. Eram os anos 1970. Mais tarde, Walter Barelli [ministro do
Trabalho do governo Itamar Franco, 1992/94], declarou: Se tem trabalho escravo,
vamos acabar com ele. E foi para Marabá (PA), acompanhado da auditora Vera
Jatobá. Lá, eles criaram os grupos rurais de fiscalização. Os grupos móveis
nasceram no governo Fernando Henrique Cardoso.
Como um homem se tornava escravo nos anos 1990?
O cara pegava um ônibus e chegava numa cidade
– podia ser em Barras de Maratauã (PI), e anunciava em uma rádio FM que tinha
trabalho no Pará. Ele, então, escolhia os mais novos, os mais fortes ou então
aqueles que já tivessem trabalhado uma vez. De tanto o Ministério do Trabalho,
o Ministério Público do Trabalho, a Polícia Federal e a Polícia Rodoviária
Federal combaterem esse crime, eles mudaram a tática.
Como é organizada uma operação de fiscalização?
E tudo feito em sigilo. Na operação de
Xinguara, por exemplo, não sabia o que ia ocorrer. Então, antes, em Marabá,
encontramos os outros, Sônia Nassar, Alírio e Raimundo Tadeu. Também
encontramos os policiais federais.
Naquele dia, senti o perfume da violência na
cidade. Eu me assustei. O X9 também estava com medo. Tanto que saiu correndo do
carro, no meio da noite, depois de passar as informações sobre o local da
fazenda e o nome do gato. Chegamos ao amanhecer. Estava escuro. A polícia pegou
Baiano Chapéu Preto e nós fomos calcular o tempo de serviço e o valor a que
cada trabalhador tinha direito. Foi a primeira vez em que me deparei com a
inteligência dos peões. Faltou cola para fixar o retrato na carteira de
trabalho e um peão, o Vampiro, pegou um pedaço de isopor, um pouco de gasolina
e fez a cola. Era assim que ele colava os bicos das botinas, no meio do mato.
Encontrei aquele gato outras duas vezes, nas fazendas Brasil Verde e na Rio
Vermelho, ambas no sul do Pará.
O tempo do planejamento depende de cada caso.
Se for roço de juquira tem que ser rápido. Imagine um fazendeiro com 200 peões
cortando juquira para limpar pasto. Em três ou quatro dias, tudo estará
terminado.
Qual é a dinâmica atual do trabalho escravo? Depois do cerco aos
fazendeiros, como eles agem para aliciar mão de obra?
A dinâmica hoje é outra. O gato paga o dinheiro da passagem para
o peão, até Miranda do Norte (MA). Lá, ele pega o trem da Vale do Rio Doce e vai até Marabá (PA). É
um trem de carga e de passageiros. Em Marabá, ele pega uma caminhonete
garimpeira, uma D-20 coberta de lona com bancos de madeira e vai até Xinguara.
Lá, ele fica em um hotel de pioneiro à
disposição do gato. A dona da pensão nem se preocupa com o dinheiro das
diárias, porque ela sabe que mais dia menos dia vai chegar um gato para assumir
a dívida do peão e levá-lo para uma fazenda. Essa é a dinâmica de hoje.
Os
donos de hotéis também são cúmplices?
Sim, eles fazem parte da teia e alguns já
estão sendo processados.
Quando
o fazendeiro se torna cúmplice?
O grande patrão somente entra nesse circuito
quando ele chama o gato, o arregimentador da mão de obra, e diz: “Eu quero
tantos.” Ele não quer saber se o trabalhador veio do Piauí, do Ceará ou do
Maranhão. Aí o gato chega e diz que tem 30 na pensão da dona Lourdes. “Paguei
R$ 3 mil. Está aqui o caderno.” O cara vai e paga o dinheiro para ele. Aí
começa a história.
Qual a
reação dos fazendeiros?
O fazendeiro tem que pagar as rescisões na
ficha, na hora. Houve uma época, no sul do Pará, que eles fizeram uma caixinha.
Sabiam que os grupos não davam conta de mais de duas fazendas. Então, se um
grupo está em uma fazenda e o fazendeiro não tem como pagar, esse grupo vai
fiscalizando outras propriedades. Assim, eles se juntaram para pagar as dívidas
rapidamente. Era uma forma de o grupo móvel ir embora logo.
Como
ocorrem as operações?
A denúncia chega até a Comissão Pastoral da
Terra (CPT ) ou a um sindicato de trabalhadores, que a encaminha à Secretaria
de Inspeção do Trabalho. O MTE repassa os dados à Polícia Federal e ao MPT. O
planejamento de uma ação dura de um a três dias. Geralmente, ocorrem em
carvoarias, canaviais ou pastagens. A gente chega de surpresa. Eles não têm
como saber que estamos indo. Chegamos nos hotéis em carros descaracterizados.
Os donos desses estabelecimentos têm ligações estreitas com os fazendeiros, que
não moram na região.
Então, não dizemos quem somos. Quando eles
vêm de Goiânia (GO), Araguaína ( TO), Araçatuba (SP), ficam hospedados nos
mesmos hotéis que nossa equipe. Os gatos também ficam lá. Então, temos que ser
cuidadosos. Dizemos que somos de uma universidade. Que estamos fazendo
pesquisas.
Como os
procuradores do Trabalho entraram em cena?
A primeira vez em que viajei com um
procurador do Trabalho foi em uma operação de fiscalização em 1998. Na cabeça
da gente, os procuradores do Trabalho estavam distantes. Quando o MPT entrou na
luta, a coisa mudou, porque passamos a ter quem acionasse a Justica
imediatamente. Nós lavrávamos autos de infração, mas dez autos não têm a
dimensão de um termo de ajustamento de conduta. Até em relação à Polícia, pois
ficou mais fácil se entender com os policiais. Os fazendeiros ficaram mais
acuados. A imprensa também passou a acompanhar as operações e a questão ganhou
visibilidade
Você já
deve ter vivido centenas de histórias...
Em Água Azul do Norte, no Pará, os peões
achavam que eram bem tratados, pois o fazendeiro levava prostitutas ao
acampamento. Em Itupiranga, no mesmo estado, o informante se enganou e deu o
rumo errado da fazenda. Estávamos em três carros. Dormimos em Quatro Bocas, em
um hotel sobre palafitas. Saímos cedo e paramos para comer ainda pela manhã.
Era a Copa do Mundo de 2002 e o Brasil jogava contra a China. Quando voltamos
aos carros, tinha um cara com o rosto coberto na frente de um deles. Os 12
assaltantes entraram, quatro em cada caminhonete. Curicaca levou um tapa de um
deles. “Não mexe com o motora, porque ele não tem nada a ver com isso”, ouviu
de outro. Fugiram em um ônibus e um caminhão de boiadeiro, levando armas,
munição, notebooks e telefones. Eles sabiam quem éramos, eu tenho certeza.
Qual a
que você sempre se lembra?
Foi a do menino Abel. Tinha 12 anos e
trabalhava em uma carvoaria na região de Açailândia (MA). Fui conversando com
ele. – Como é sua vida aqui? – Acordo às 5h. Vou tomar banho, tomo o café e
começo a bandeirar [colocar a madeira em condição de ser medida]. Depois, vou
encher o forno e almoço. Paro às 16h. – Não brinca e não estuda? – Não tenho
tempo disso, não. Uma criança de 12 anos desesperançada. Ele não tinha
perspectiva de vida. Vivia juntando dinheiro para comprar uma casa para a mãe,
que tinha problema nas pernas. Seu maior sonho era ter uma bicicleta. Foi
libertado e recebeu um dinheiro. Nunca mais tive notícias de Abel.