quarta-feira, 17 de março de 2010

O TRÂNSITO E A ALMA

Pádua Ramos
Há algum tempo, alguém, cujo nome já não recordo, escreveu uma crônica-ensaio sob o título “Psiquiatria do Automobilista”. Em suma, dizia que o interior dos automóveis tornava anônimos os guiadores. Portanto, liberava-os da, por não observados por terceiros, pressão do social sobre o individual. Em outras palavras: da influência coercitiva da coletividade sobre a pessoa singularmente considerada, no referente à eventual desobediência desta aos valores professados pelo sistema social. Esta seria a explicação para o fato curioso de até mesmo pessoas normalmente tímidas, serenas, prudentes, transmudarem-se repentinamente em aventureiros audaciosos, quando guiando.

Esse mesmo fenômeno já foi constatado em relação à pessoa humana inserta na multidão. Na essência, tanto a primeira situação (interior do automóvel) como esta segunda (interior da multidão) apóiam-se no... anonimato. De fato, no meio da massa o rosto definido de um determinado alguém dilui-se. Subsome-se. E aquele alguém determinado não se sente responsável, enquanto anônimo. Enquanto pessoa dissolvida naquele agrupamento amorfo. À qual ninguém faz cobrança. Daí o fenômeno derivado, da dificuldade para a contenção das massas furiosas, engajadas irracionalmente, por exemplo, num quebra-quebra. Fenômeno esse, o da irracionalidade das multidões, que levou o Papa Pio XII a escrever página antológica sobre o conceito de Povo, oposto ao de Massa: Povo, como conjunto de pessoas conscientes, cientes de direitos, mas igualmente de deveres. Sensatas; e Massa, aglomerado informe de pessoas demitidas de sua interioridade de seres humanos racionais e responsáveis, tangidas para lá e para cá pela técnica da demagogia.

O que aqui interessa particularmente é o caso do anonimato no trânsito: tela na qual se vem projetando o exercício (liberado pelo anonimato e protegido por ele) dos pequenos gestos de grosseria, como a da buzina desnecessária; a do impedimento de que alguém ultrapasse, apesar do pedido via sinalização; a da criação de obstáculo a que o veículo há tempo situado na viela tenha acesso à via principal. Trata-se de pequenos egoísmos, de pequenas descortesias, de arrogâncias pequenas. O espetáculo do trânsito oferece amostra grande, como se diria em Estatística, para o estudo do que vai pelo íntimo das almas.

E o trânsito revela: a sociedade está enferma de egoísmo.

Alguém dirá que são pecadilhos da alma. Que se trata de miudezas, não preocupantes. Sem se dar conta de que a Maldade do mundo nasce das pequenas sementes vicejantes no interior das almas. Eis por que Dom Fulton Sheen, aquele bispo católico norte-americano, tão lido pelos que eram jovens nos anos cinqüenta, escreveu em “Angústia e Paz”: “As guerras mundiais não passam de projeções dos conflitos travados dentro das almas dos homens modernos, pois nada acontece no mundo exterior que não haja primeiro acontecido dentro duma alma.” O problema do mundo, insistem os espiritualistas, é religioso. O espaço no íntimo das pessoas vazio de religiosidade está preenchido pelo egoísmo, conforme atesta o desconcerto do trânsito, na verdade o desconcerto das almas.
Pádua Ramos é economista, professor, ex-secretário de Planejamento do Estado do Piauí e atualmente assessor da Prefeitura de Parnaiba para assuntos da ZPE do município.