Caros amigos, apresento-lhes uma das produções literárias
que me vieram à pena, ou melhor, ao teclado, numa destes feriadões de 2013. Trata-se
de um conto rápido e despretensioso. (F.
Carvalho)
O olhar oblíquo da quase-freira
F.
Carvalho

Mas
o que ela tinha de mais desconcertante era o olhar.
-
Esta mulher é a encarnação da Capitu – disse Melchior, certa vez, ao seu amigo Manolo. – Ela tem o olhar oblíquo!
- Olhar
de ressaca, é o que você está querendo dizer, meu amigo – corrigiu o outro ao
perceber que Melchior referia-se à personagem machadiana do romance Dom
Casmurro.
-
Oblíquo ou de ressaca, seja lá o que
for. Eu só sei que ela tem um olharzinho recatado e ao mesmo tempo malicioso...
Ela olha com um jeito tímido, mas provocante.
-
Uma safadinha, é o que você insinua! – definiu Manolo
-
Isso. Isso aí. É isso que ela esconde por trás de tanto recato – concluiu Melchior.
-
Mas eu acho que você está errado. Conheço essa menina. Saiu ano passado do
convento. Ia ser freira, mas preferiu voltar para casa.
-
Freira? Ia ser freira? Humm! E porque a belezura desistiu de ser esposa de
Jesus?
-
Não seja maledicente! Já lhe disse que essa moça é um poço de virtudes. Mesmo
tendo renunciado o convento continua servindo à Igreja. É orientadora nos
cursilhos, ensina o catecismo às criancinhas todos os sábados e é a voz mais
linda do coral da catedral – defendeu Manolo.
-
Humm! Eu sei. Mas o olhar dela me desconcerta. Definitivamente não é a candura
de um anjinho que ela transmite no brilho esfuziante das suas pupilas.
-
Cara, não fala assim da menina – Pediu Manolo. - Olha, eu vou te falar uma
coisa: Essa moça é minha afilhada. Não fala assim dela. Puta que pariu! Como
você é pervertido. Pensar horrores de uma moça tão...
-
Pô! Cara, desculpas. Quem não sabe é como quem não vê. Eu não sabia que ela era
tua afilhada. Mas também, quem manda ter uma afilhada tão...
-
Cala a boca! - Mandou Manolo, ficando vermelho de raiva.
-
Que é isso, homem? Você não é de perder a esportividade! – estranhou o outro.
Manolo,
que também estava recostado no parapeito, saiu bufando e foi para sua mesa de
trabalho e naquela tarde não quis mais conversa com Melchior. Mas na cabeça
dele pululavam todos aqueles termos qualificativos dirigidos à sua afilhada.
“Safadinha”, “olhar oblíquo”, “olhos de ressaca”, enfim, uma nova Capitu. Nunca
havia olhado para Dália com estes olhos. Lampejavam agora na sua mente cenas calientes da garota, mas resistia.
Tentava a todo custo ter outros pensamentos que não fossem profanos. Lembrou o
quanto ele e seu compadre Olivaldo eram amigos e se estimavam. Esperou que a nobreza
destes pensamentos varresse a sujeira que enodoavam a imagem que tinha da
menina. “Seu olhar era mesmo dissimulado? Será que ela escondia detrás dos
olhos o furacão libidinoso sugerido por Melchior?”, perguntou-se.
Era
sexta-feira. Manolo foi para casa com a cabeça poluída, entupida de ideias
prevaricadoras. Não conseguiu dormir
naquela noite.
....
Corre pela boca do povo que quando o Satanás não vai,
manda o secretário. Uma destas duas
coisas aconteceu na tarde do dia seguinte, um sábado, em que o centro da cidade
estava mais vazio que o Saara. Manolo precisou
de uma petição que só poderia ser encontrada no hard disc do seu computador, no escritório, e para lá se dirigiu.
Viu que o carro de Melchior estava estacionado. Tentou
imaginar o que o sócio estaria fazendo àquela hora no escritório. Subiu um
pequeno lance de escadas e logo se viu diante da porta. Nenhum mínimo reflexo
de lâmpada acesa. Abriu a porta, entrou e ligou a luz.
- Que diabo é isso? – Pensou consigo, assustado ao ver
paramentos de freira em cima do sofá da recepção. À esquerda uma calcinha branca, largada ao
acaso. – Mas que putaria é essa? Perguntou-se, novamente.
Abriu a porta do escritório e foi tomado por um súbito
torpor. Não conseguia processar aquilo tudo. Uma inacreditável cena de sexo em
meio a códigos e vade-mécuns. Divisou uma moça morena totalmente despida, mas
com capuz de freira na cabeça. Gritou:
- O que é isso?
Os dois devassos olharam para a porta.
- Dália!!! Melchior!!! – gritou Manolo
Melchior
era o mesmo que sempre dizia com despudorado moralismo: “Local em que se ganha
o pão não se come carne”.
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